STJ IGNORA NORMA DO CPC AO FIXAR HONORÁRIOS EM DESFAVOR DA FAZENDA

Análise da decisão da Primeira Turma do STJ, que ao decidir REsp 1.771.147/SP, afastou o comando do §3º, do art. 85, do CPC

 

A estipulação de uma regra explícita para o arbitramento de honorários sucumbenciais nos processos em que a Fazenda Pública for sucumbente, era um anseio da sociedade. O advogado em seu ministério privado presta serviço público e exerce função social[1].

Na evolução histórica da disciplina concernente aos honorários advocatícios sucumbenciais, estes foram instituídos como modo de punição a parte que provocou de forma temerária a instauração da lide, a ser interpretado com base no princípio da causalidade.

O Código de Processo Civil de 1973 estabelecia critérios quantitativos para o arbitramento da verba honorária, de 10% a 20% sobre o valor da condenação (art. 20, §3º), no entanto, nas causas que vencida a Fazenda Pública, a fixação se realizava pela equidade (art. 20. §4º).

A equidade é uma forma de aplicação do Direito, onde há adaptação da regra existente à situação concreta, ficando ao critério subjetivo do julgador fixar o montante dos honorários de sucumbências nas causas quando vencida a Fazenda Pública. A aplicação deste instituto ensejou decisões dispares, muitas das vezes com valores ínfimos de condenação de honorários de sucumbência, a qual não remunerava adequadamente o causídico.

Objetivando corrigir esta dicotomia, o Código FUX[2], aprovado após árduo processo legislativo, especifica nos incisos do parágrafo 3º, do artigo 85, de modo transparente, que nas causas em que a Fazenda for parte, esta será condenada ao pagamentos das verbas sucumbenciais em percentuais mínimos e máximos sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido, permitindo o emprego da equidade apenas no caso de valor inestimável ou irrisório proveito econômico (§8º, do art. 85 do CPC/15).

Porém, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), corte responsável por uniformizar a interpretação da lei federal em todo o Brasil, por meio de seus Ministros, amparados em convicções íntimas, vem afastando os comandos claros da lei federal, sempre com embasamentos travestidos de princípios, norteados por uma busca de JUSTEZA, que mais desvalia do que disciplina as normas para sociedade, em uma última análise, apenas causam uma verdadeira insegurança jurídica e retrocesso.

Recentemente a 1ª Turma do STJ não agiu diferente ao julgar o REsp 1.771.147/SP[3] e, pela maioria, desconsiderou norma legal clara para fixação de verba honorária nas causas que envolvem a Fazenda Pública determinada no parágrafo 3º, do artigo 85, do Código de Processo Civil, ao estabelecer percentual aquém do que o delimitado pela lei vigente, sob o fundamento de “justiça em caso concreto”.

No caso sob apreciação, se analisou execução fiscal extinta mediante objeção não resistida. Após citação do devedor, este comprovou o pagamento do crédito tributário em data anterior a distribuição da ação, sendo cancelada a inscrição da dívida ativa pela Fazenda no valor atualizado de R$ 2,7 milhões, ensejando sua condenação em custas sucumbenciais e honorários advocatícios nos termos do parágrafo 3º, do artigo 85 do CPC.

A Fazenda Pública recorreu e o tribunal de origem reformou a condenação de honorários fixando a condenação em R$ 4 mil mediante apreciação equitativa. Inconformada, a empresa em sede de Recurso Especial, conseguiu parcial provimento, para fixar os honorários advocatícios em 1% sobre o valor da execução.

Ao assim julgar, a 1ª Turma do STJ ignorou o comando legal da norma, exatamente o inciso III, do parágrafo 3º, do artigo 85 do CPC, o qual ensejaria uma condenação em verba honorária mínima superior a R$ 135 mil, ao se aplicar 5% sobre a exação indevida de R$ 2,7 milhões. Amparada na “dita justiça em caso concreto”, a corte fixou em 1% a verba honorária sobre o valor atualizado da execução, reduzindo a expectativa mínima de honorários do causídico de R$ 135 mil para algo em torno de R$ 27 mil.

Isso sob o argumento que “o labor advocatício foi bastante simples e descomplicado, tendo em vista que a mera informação de pagamento da dívida tributária, moveu a Fazenda Pública exequente à extinção da própria execução; não houve recurso, não houve instrução e tudo se resolveu quase de forma conciliatória”.

A baixa complexidade realmente é fator a ser observado para definição dos honorários, justamente para delimitar entre o percentual mínimo e máximo sobre o proveito econômico obtido, esperando, entretanto, que a 1ª Turma da alta Corte respeitasse a norma legal federal estabelecida, neste caso arbitrando 5%, percentual mínimo, restabelecendo a sentença, e não 1%, como o fez.

A interpretação dada a norma federal, conforme voto do Relator, se fundamentou no “artigo 1º, do Código FUX, que orienta que o processo civil observe princípios e valores, bem como a lei, significando isso a chamada justiça no caso concreto, influenciada pelas características e peculiaridades do fato-suporte da demanda, o que deve ser adequadamente ponderado”.

Ocorre que somente é possível interpretar, aplicando-se os princípios gerais de direito, quando há omissão ou lacuna. As lacunas da lei representam a ausência de uma norma específica, ou mesmo de um critério para a aplicação de outras normas. Para suprir essa falta, o operador do Direito pode se valer de uma série de técnicas de integração com fito de manter sua efetividade, independentemente das transformações sociais.

É exatamente o que prescreve artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. DINIZ (2011a, p. 99[4]) explica a dinâmica a ser realizada pelo julgador diante de uma lacuna:

“Como se vê, no preenchimento de lacunas jurídicas, deve ser respeitada a ordem de preferência, indicada no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil. De sorte que o magistrado em caso de lacuna deverá, em primeiro lugar, constatar, na própria legislação, se há uma semelhança entre fatos diferentes, fazendo o juízo de valor de que esta semelhança se sobrepõe às diferenças. Somente se não encontra tais casos análogos é que deverá recorrer às normas consuetudinárias; inexistindo estas lançará mão dos princípios gerais de direito, e, se porventura estes últimos inexistirem ou se se apresentarem controversos, recorrerá à equidade, sempre considerando as pautas axiológicas contidas no sistema jurídico. A equidade exerce função integrativa, uma vez esgotados os mecanismos do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, na decisão: a) dos casos especiais, que o próprio legislador deixa, propositadamente, omissos, isto é, no preenchimento das lacunas voluntárias, ou seja, daqueles casos em que a própria norma remete ao magistrado a utilização da equidade, e b) dos casos que, de modo involuntário, escapam à previsão do elaborador da norma; por mais que este queira abranger os casos, ficam sempre omissas certas circunstâncias, surgindo, então, lacunas involuntárias, que devem ser preenchidas pela analogia, pelo costume e pelos princípios gerais de direito, sendo que na insuficiência desses instrumentos se deverá recorrer à equidade”.

De tal modo, sem se adentrar a cada espécie de interpretação, se tem claro que o julgador está autorizado a utilizá-la somente quando existir lacuna ou falhas no comando legal.

Ocorre que, no julgado sob análise, não há lacuna na lei. O comando do §3º do artigo 85 do Código FUX é de compreensão hialina. Há percentuais mínimos e máximos a serem aplicados, não podendo se aplicar a equidade, nos exatos termos do artigo 140 do CPC/15, uma vez que não se trata de caso de valor inestimável ou irrisório proveito econômico (§8º, do art. 85 do CPC/15). Logo, a 1ª Turma do STJ, corte responsável por garantir a aplicação da lei, decidiu simplesmente por não aplicar lei em vigor, praticando verdadeiro ativismo judicial.

A única hipótese de abdicação de aplicação de lei se verifica na rara exceção de uma lei cair em desuso, ou se determinada lei saiu do sistema por declaração de inconstitucionalidade, o que efetivamente não é o caso.

O artigo 2º da Lei de Introdução consagra o princípio da continuidade da lei, assim, a partir de sua entrada em vigor essa tem eficácia continua, até que outra norma a modifique ou a revogue, total ou parcialmente, seja de modo expresso ou tácito. Há exceção ao princípio da continuidade da lei se dá somente nos casos desta ter vigência temporária.

E ainda, ao justificar a decisão no artigo 1º do Código FUX, e ignorar comando expresso de lei, os eméritos Ministros preteriram a exposição de motivos do CODEX:

“O novo Código prestigia o princípio da segurança jurídica, obviamente de índole constitucional, pois que se hospeda nas dobras do Estado Democrático de Direito e visa a proteger e a preservar as justas expectativas das pessoas. Todas as normas jurídicas devem tender a dar efetividade às garantias constitucionais, tornando “segura” a vida dos jurisdicionados, de modo a que estes sejam poupados de “surpresas”, podendo sempre prever, em alto grau, as consequências jurídicas de sua conduta. Se, por um lado, o princípio do livre convencimento motivado é garantia de julgamentos independentes e justos, e neste sentido mereceu ser prestigiado pelo novo Código, por outro, compreendido em seu mais estendido alcance, acaba por conduzir a distorções do princípio da legalidade e à própria ideia, antes mencionada, de Estado Democrático de Direito. A dispersão excessiva da jurisprudência produz intranquilidade social e descrédito do Poder Judiciário. Se todos têm que agir em conformidade com a lei, ter-se-ia, ipso facto, respeitada a isonomia. Essa relação de causalidade, todavia, fica comprometida como decorrência do desvirtuamento da liberdade que tem o juiz de decidir com base em seu entendimento sobre o sentido real da norma”.

Nota-se que o Código FUX visou assegurar a justa expectativa dos jurisdicionados, além do Estado Democrático de Direito, preservando principalmente a Separação dos Poderes, sendo o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, independentes e harmônicos entre si. Apenas relembrando, cabe ao Judiciário a função de dizer o direito ao caso concreto, pacificando a sociedade, em face da resolução dos conflitos, sendo, sua função atípica, a de administrar e legislar. Assenta aqui, “como uma luva”, lição de REALE (2002a, p. 113[5]):

Deve observar-se que não se sabe qual o maior dano, se o das leis más, suscetíveis de revogação, ou o poder conferido ao juiz para julgar contra legem, a pretexto de não se harmonizarem com o que lhe parece ser uma exigência ética e social”. 

Ao julgar o REsp 1.771.147/SP, a 1ª Turma do STJ, por maioria, desconsiderou lei eficaz e vigente, ignorando que o novo Código de Processo Civil teve como objetivo a redução da discricionariedade do magistrado, mitigando a apreciação equitativa do julgador que gerava grande insegurança jurídica.

Amparar a decisão sob a égide de “justiça no caso concreto” é subverter o sistema, agravando o exercício de função atípica do judiciário, um grande desserviço à sociedade. Ao assim decidir, a Primeira Turma do E. STJ, ao invés de estimular a segurança jurídica prefere, ao contrário, reprimi-la, descreditando o Poder Judiciário.

 

[1] Art. 2º, § 1º, do Estatuto da OAB;

[2] Alcunha dada ao novo Código de Processo Civil-CPC, pelo fato da comissão oficial do Senado para a criação do novo CPC ter sido presidida pelo então ministro do Superior Tribunal de Justiça-STJ Luiz Fux.

[3] REsp 1.789.913/DF, julgado pela 2ª Turma, também afastou o comando expresso do artigo 85, §3º;

[4] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. v. 1. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2011a.

[5] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002a.

 

 

 

ANA PAULA MORO DE SOUZA, sócia na área tributária do AMBF Advogados, pós-graduada no IBET – Instituto Brasileiro de Estudos Tributários

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